domingo, 30 de maio de 2010

MEU NOME É “IKE”


Ele surgiu exatamente na hora em que o menino mais precisava
Por Gary Paulsen

            A maior parte de minha infância em Thief River Falls, Minnesota, foi muito solitária. Problemas familiares, enorme timidez e total falta de traquejo social causavam minha solidão. Por isso, praticar caça não foi apenas uma entrada para o mundo encantado – foi minha salvação.
            A partir dos 12 anos, eu vivia para caçar e pescar. Nos dias de aula, caçava pela manhã e à noite. Nas sextas-feiras eu me embrenhava na floresta e costumava passar lá o fim de semana.
            Mesmo assim, eu ainda não aprendera a amar a solidão como hoje. Quando via algo bonito – o sol entre as folhas, um cervo se esgueirando na contraluz - , tinha vontade de mostrar para alguém e dizer: “Olhe só!” Mas não havia ninguém para ouvir.
            Foi aí que encontrei Ike.
            Era o começo da temporada de caça ao pato. Acordei às 3 horas da madrugada, saí de nosso apartamento e andei quatro quarteirões até o pátio da estrada de ferro. Depois atravessei a ponte e segui pela margem do rio até entrar na floresta.
            Caminhar no escuro era difícil. Após mais de dois quilômetros, fiquei andando num pântano e tentei para a margem do rio onde o terreno era mais firme.
            A lama escorregava como graxa. Caí, mas consegui subir para a margem outra vez, segurando a espingarda com uma das mãos e agarrando as raízes das plantas com a outra. Quando  subi, uma parte do escuro se mexeu, chegou perto do meu rosto e fez “ulf”.
            Por um instante fiquei gelado.
Em seguida, afastei os arbustos e me joguei na rampa.


Enquanto isso, pensei:
 Um urso!      
Agarrei um cartucho no bolso e o coloquei na espingarda.
            Estava mirando o alvo quando algo me fez parar. O que quer que fosse, permanecera sentado no alto da margem do rio olhando para mim, embaixo. A luz só lhe marcava a silhueta. De um cachorro. Grande, preto, mas cachorro.
            Abaixei a espingarda e tirei a lama de meus olhos.
-          A quem você pertence? – perguntei.
O cachorro não se mexeu e tornei a subir a rampa.
-          Olá! – gritei em direção à floresta. – Seu cachorro está aqui!
Ninguém respondeu.
- Então você está perdido.
Animais perdidos costumam ser arredios e estar com fome. No entanto, esse cachorro – um labrador – estava bem alimentado e seu pêlo era farto. Ficou ao meu lado.
-          Bem – disse eu - , o que faço com você?
Quase por um impulso, acrescentei:
-          Quer caçar?
Ele conhecia aquela palavra. Bateu o rabo no chão e, agitado, foi para a beira do rio.
Eu nunca tinha caçado com um cachorro, mas comecei a segui-lo. Já havia luz suficiente para atirar, por isso preparei a espingarda. Não havíamos andado mais do que 45 metros quando dois patos selvagens surgiram dentro da densa vegetação à margem do rio e levantaram vôo.
Ergui a espingarda, engatilhei, mirei pouco acima do pato à minha direita e puxei o gatilho. Houve um estrondo e a ave caiu na água.
Antes, quando atirava em patos selvagens sobre o rio, tinha de esperar até a correnteza trazer o corpo para a margem. Dessa vez foi diferente. Com o cheiro da pólvora ainda no ar, o cachorro deu um grande salto e mergulhou. Agitando a água, foi em linha reta na direção do pato morto. Abocanhou-o delicadamente, virou-se e nadou de volta. Subiu a margem do rio e colocou-o ao lado do meu pé direito. Depois, afastou-se um pouco e sentou. A essa altura, o sol já tinha surgido e vi que o cachorro trazia coleira e identificação. Afaguei-o – ele permitiu, discretamente – e puxei a identificação.
Meu nome é Ike.
Era só o que dizia. Não tinha endereço nem o nome do dono.
-          Bem, Ike, obrigado por me trazer o pato.
Ele abanou a cauda e foi assim que tudo começou.
No resto da temporada, cacei no rio todos os dias de manhã cedo. Atravessava a ponte, chegava ao rio e lá estava Ike. No meio da segunda semana, achei que iríamos caçar juntos pelo resto da vida.
Terminada a caçada, ele caminhava a meu lado até chegarmos à ponte. Então, sentava e nada nesse mundo o fazia ir mais longe.
Eu tentava esperar para ver aonde ele ia. Mas assim que ficava óbvio que eu não queria ir embora, ele simplesmente deitava e dormia. Certa vez atravessei a ponte e me escondi atrás de uma construção para olhar. Ele ficou ali até eu sumir de vista, depois virou, seguiu na direção norte pelo rio e entrou na floresta.
Se a outra parte de sua vida era um mistério, quando juntos éramos amigos leais. Eu cozinhava mais um ovo para o sanduíche dele e se não havia pato, nós conversávamos. Quer dizer, eu falava. Ike sentava com a enorme cabeça apoiada em meu joelho, olhando-me com grandes olhos castanhos enquanto eu lhe fazia carinho e contava todos os meus problemas.
Nos fins de semana que passava ao ar livre, eu construía um alpendre e fazia fogueira. Ike se enroscava na beira do meu cobertor. Muitas vezes pela manhã eu o vi sob o cobertor ressonando, com meu braço por cima dele.
Era como se Ike sempre tivesse sido parte de minha vida. Até que, certa manhã, não apareceu. Esperei na ponte várias manhãs, porém não o vi mais. Achei que tivesse sido atropelado por um carro, ou os donos se tivessem mudado para outro lugar. Nunca mais soube dele. Senti muita falta de Ike.
Cresci e passei pela parte mais louca de minha vida, com os erros que todos os jovens cometem. Mais tarde, tornei-me a me interessar por cachorros – por cães condutores de trenó – e participei da corrida Iditarod no Alasca.
Depois da primeira corrida, voltei para Minnesota com muitos slides. Um de meus patrocinadores foi uma loja de artigos esportivos. Certa noite fiz uma projeção dos slides aberta ao público.
Havia na platéia um senhor numa cadeira de rodas. Quando contei que  Cookie, me cachorro-guia, tinha salvado a minha vida, seus olhos se encheram de lágrimas. Ele balançou a cabeça, concordando. Terminada a projeção, veio me cumprimentar.
-          Tive um cachorro como o seu Cookie, que salvou a minha vida.
-          Ah, você andava de trenó puxado por cães?
Ele negou.
-                     Não, nada disso. Eu morava em Thief River Falls quando fui convocado para a Guerra da Coréia. Tinha um labrador que costumava caçar comigo. Fui ferido e fiquei paralítico. Ao sair do hospital, ele estava me esperando. Passou o resto da vida ao meu lado. Sem meu cão, eu teria enlouquecido. Ficava horas conversando com ele...
Falou mais baixo e os olhos lacrimejaram.
-          Até hoje sinto falta dele.
Olhei para o homem e depois desviei o olhar pela janela. Era primavera e a neve estava derretendo, mas eu via um garoto de 13 anos com um labrador, de tocaia, à espera de um pato no outono.
Thief River Falls , foi o que ele disse, e Guerra da Coréia. A mesma época e o mesmo lugar.
-          Seu cachorro chamava-se Ike? – perguntei.
O homem sorriu e concordou.
-          Sim, mas como? Você o conheceu?!
Foi por isso que Ike nunca mais voltou. Tinha outra tarefa a cumprir.
- Sim, ele era meu amigo – respondi.

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